Os sapatos da Camponesa

Os sapatos da Camponesa - Van Gogh

Da escura abertura do gasto interior do calçado olha-nos fixamente a fadiga do andar do trabalho. Na dura gravidade do calçado retém-se a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que sempre iguais se estendem longe pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro fica a umidade e a fartura do solo. Sob as solas demove-se a solidão do caminho do campo pelo final da tarde. No calçado vibra o quieto chamado da terra, sua silenciosa oferta do trigo maduro, sua inexplicável recusa na desolação do campo no inverno. Por esse utensílio passa o calado desassossego pela segurança do pão, a alegria sem palavras por ter mais uma vez suportado a falta, a vibração pela chegada do nascimento e o tremor ante o retorno da morte.

Fragmento do livro "A Origem da Obra de Arte", Heidegger.

Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias

Quero só noticia boa/ também daquela pessoa, oba.
Hoje eu escolhi passar o dia cantando
De hoje em diante eu juro felicidade a mim
Na saúde, na saúde, juventude, na velhice
Vou pelos caminhos brandos
A minha proposta é boa, eu sei
De hoje em diante tudo se descomplicará
Com um nariz de palhaço
Rirei de tudo que me fazia chorar
Cercada de bons amigos me protegerei
Numa mão bombons e sonhos
Na outra abraços e parabéns...


Vanessa Mata.


Recorte da obra Serpentes d'Água II - Gustav Klimt





A Desobediência Civil

Nessas minhas andanças por aqui e por aí, acabei topando com dois textos que me afetaram profundamente. E como de costume, não poderia deixar de compartilhar.
O primeiro é um fragmento tirado de "A Desobediência Civil" de Henry David Thoreau, escrito em 1848, impressiona por ser tão atual:

"Há seis anos que não pago o imposto per capita. Fui encarcerado certa vez por causa disso, e passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse apenas carne e sangue e ossos a serem trancafiados. Fiquei especulando que ela devia ter concluído, finalmente, que aquela era a melhor forma de me usar e, também, que ela jamais cogitara de se aproveitar dos meus serviços de alguma outra maneira. Vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma mu­ralha muito mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão livres quanto eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes pareceram-me um desperdício descomunal de pedras e argamassa. O meu sentimento era de que eu tinha sido o único dos meus concidadãos a pagar o imposto. Estava claro que eles não sabiam como lidar comigo e que se comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que o meu maior desejo era o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões - que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo estava de fato contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance, resolveram punir o meu corpo; agi­ram como meninos incapazes de enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chuto no cachorro do seu desafeto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável."

Banksy


O segundo fragmento, do livro "Movimentos Culturais de Juventude" de Antônio Carlos Brandão e Milton Fernandes Duarte, aborda exatamente essa temática. Enfatizando a luta de M. Luther King que segundo os autores, era um seguidor da desobediência civil pacífica assim como Mahatma Gandhi e Leon Tolstoi: 

"...acreditavam que o Estado nunca enfrentaria deliberadamente o cidadão do ponto de vista moral ou intelectual. Ao contrário, o Estado e seus aparelhos repressores (polícia, exército, etc.) atacariam o corpo do indivíduo, usando sua grande capacidade de praticar a violência física, pois não possuíam, sequer, inteligência considerável ou honestidade para que tal prática fosse evitada e tais movimentos não se alastrassem. Portanto, o único meio de lutar contra essa poderosa máquina de violência e repressão seria inventar e aplicar táticas inteiramente diferentes das cultuadas pelo Estado, ou seja, a "não-violência". (p.47)

"...Os resultados dessa campanha de desobediência não-violenta podiam ser vistos, por exemplo, na fase final do movimento, quando jovens negros corriam atrás de policiais para ser presos,  pois as celas estavam lotadas e a cadeia, naquele momento, tornara-se símbolo das pessoas que defendiam a liberdade em uma sociedade dominada pela intolerância racial. Essa inversão de valores acabou confundindo os aparelhos de repressão, levando-os, até mesmo, a não cumprir sua função, já que seus inimigos não usavam as mesmas armas." (p.48)